sábado, julho 31, 2004




(Que me cresça em amargo doce amor na boca.) Que me procure. Que invada o meu país. Que anestesie o ar suor e sangue. Que me balance em ondas. Que me preencha a morte adiada em rebentações. Que morra alinhado, consentido, provocado. (Que dos seus restos me encharque a pele.)


(Que comece tudo outra vez.)



A meu favor: vontade de ter vontade tão grande quanto as que edificaram as maiores pontes.

sexta-feira, julho 30, 2004

Vou dizer-te que descobri a verdade inadiável - que a matéria é criada a partir de sonhos; vou sussurrar-te que, um dia, te sonhei; vou cantar-te a última canção que fiz; vou deitar uma lágrima, certamente, porque o momento será sublime, e há sempre uma lágrima a identificar o momento sublime; vou pedir-te que fales pouco, mas que ouças; vou sorrir só de olhar para ti; vou dizer-te que quero, apenas, ficar ao teu lado e ver crescer o teu cabelo.



Acontece sempre um desastre antes de outro desastre.
Uma rapariga lívida, rodeada de carros de bombeiros, ambulâncias, pessoas e mais carros; lívida porque o sangue lhe escorre todo pelas pernas esmagadas entre os ferros da carroçaria do carro; lívida por ter chocado contra outro carro e as pernas lhe terem ficado presas e nem ela nem ninguém as conseguir arrancar daquele labirinto de alumínio gelado; lívida por tantas luzes circulares e por tanta gente impotente que olha.
Por exemplo.

 

Vou acender-te um cigarro; vou fumar um cigarro; vou olhar muitas vezes para o lado, porque é insuportável o tamanho que tens nos meus olhos.

 

"And who by fire, who by water, who in the sunshine, who in the night time, who by high ordeal, who by common trial, who in your merry merry month of may, who by very slow decay, and who shall I say is calling

And who in her lonely slip, who by barbiturate, who in these realms of love, who by something blunt, and who by avalanche, who by powder, who for his greed, who for his hunger, and who shall I say is calling

And who by brave assent, who by accident, who in solitude, who in this mirror, who by his lady's command, who by his own hand, who in mortal chains, who in power, and who shall I say is calling"

Leonard Cohen



quarta-feira, julho 28, 2004

STILB (s. m. Física) unidade de brilho, isto é, o brilho de uma superfície cuja intensidade por centímetro quadrado de superfície projectada sobre um plano perpendicular à direcção da radiação é de uma candela (Do grego STÍLBEIN, "brilhar").



Vou pôr palavras a dançar entre nós dois só para nos divertir.

 

Sonho-me e encontro-me num círculo luminoso projectado a vermelho. [e minha cor encarna minha cor encarnada] Fulgurantes meus dentes se rio e se choro a luz estremece. Todo o sentir é potência, todo o poder nos sentidos. [e minha cor encarnada é minha carne vermelha] Sonho-me e encontro-me nua da pele. [minha carne vermelha aos olhos todos aparece] Reparo-me em sangue, poças de sangue a meus pés. Cada passo um lago; cada lago de mim brota. [aos olhos todos aparece espessa essência, fumegante] encarnação: Vulnerável de tão nua. De tão crua, tão vermelha. De tão viva, tão brilhante. [o meu corpo encarna minha cor encarnada, espessa essência, fumegante] Encontro-me sonhada. Rubro, o foco que me projecta. Ao meu corpo flagrante encosto a pólvora. Espero, impaciente a explosão.



Até chorar
Aprendi muitas coisas: umas em momentos perfeitos; outras em autênticos infernos; outras ainda nas horas vagas, só porque as pensei. Aprendi que há tempo para viver, que há tempo para morrer, que há tempo para hibernar, que há tempo de renascer. Aprendi que tudo vale a pena, até chorar. Aprendi que custa conseguir aquilo que se quer, mas que é possível. Aprendi a dizer tudo aquilo que penso, mesmo que seja difícil. Aprendi a dançar abrindo muito os braços. E que é assim que se deve viver, também - abrindo muito os braços. Gosto cada vez mais de dançar, como gosto cada vez mais de viver.

 

A meu favor, três noites seguidas de insónia e um verão de três anos em hibernação.


Vou escrever um poema com os meus olhos e dizer-te que o poema és tu.


terça-feira, julho 27, 2004

«O amor é um único minuto. Um minuto esplêndido. O resto é hábito, palavras, hesitações, trampolinice, livros de capa amarela...»
Raul Brandão

 
Correcção
O amor veste-se - como se de um hábito se tratasse-, o amor despe-se, despudoradamente; o amor é as palavras todas, as boas e as más, desde que não contenham erros ortográficos; o amor é compreender todas as hesitações; o amor é brincadeira e trampolinice, e meia volta a sério; o amor é escrever-te em livros que amarelecerão.
O minuto esplêndido é quando temos um orgasmo simultâneo, depois damos um beijo e adormecemos juntos no chão da sala.

"Na manhã em que me levantei para
começar este livro tossi. Algo estava a
sair-me da garganta, a estrangular-me.
Rasguei o cordão que o retinha e arran-
quei-o. Voltei para a cama e disse:
Acabo de cuspir o coração.

Existe um instrumento chamado
quena que é feito de ossos humanos.
Tem origem no culto que um índio
dedicou à sua amante. Quando ela
morreu ele fez dos seus ossos uma
flauta. A quena tem um som mais
penetrante, mais persistente do que a
flauta vulgar.

Aqueles que escrevem sabem o pro-
cesso. Pensei nisto enquanto cuspia o
coração.

Só que eu não estou à espera da
morte do meu amor."

Anaïs Nin
A Casa do Incesto


A meu favor tenho mil infernos e um poema em espera.

"Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora, à luz, sem véu, do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste.
E aprendi a viver em pleno vento."

Sophia de Mello Breyner Andresen


domingo, julho 25, 2004

Um dia voltava eu dos meus segredos e encontrei-te quase dormindo. Pisei devagar com medo que acordasses do teu quase sono. Aproximei os olhos e estavas deitado de lado, iluminado pela luz intermitente da televisão. Parecias quase meu irmão. Estive quase a tapar-te o corpo com qualquer coisa que estivesse à mão. Estive quase a dar-te um beijo nos cabelos mas não me pareceu prudente. Voltei as costas. Pisei devagar no corredor. Preparei a cama, preparei-me para dormir. Quando voltei para te dizer anda, vem comigo para a cama, devo ter feito mais barulho que as folhas das árvores. Sentaste-te e esfregaste os olhos. Eu quase chorei de felicidade. Podia ter sido hoje, quase foi.


sexta-feira, julho 23, 2004

Não tenho medo, sequer de ter medo:
do dia perfeito, do dia eterno, do dia sereno, do dia;
de encontrar o meu lugar, de encontrar o teu lugar,
de encontrar um lugar nosso;
da verdade, de palavras inteiras, do sentido sublime;
da minha nudez, da tua nudez, de tudo a nu;
de te querer, de te pedir, de te chorar;
de não saber, de não ouvir, de não falar;
de fechar os olhos, de me deixar guiar,
de que não me obedeças. 
 
Não tenho medo, sequer de ter medo,
de que, subitamente, surjas.


domingo, julho 18, 2004

Vinhas na minha direcção. Consegui reconhecer-te debaixo do fato estanque que usas quando vais à lua. Reconheci-te mesmo antes de tirares o capacete e sorrires com a cara feliz e transpirada de quem viaja pelos astros mas que, no entanto, gosta da hora do regresso. Os teus movimentos em direcção a mim declararam-te. Caminhavas como quem toma terreno conquistado, com ar de certezas e posse; como quem pisa terreno seguro como o chão de casa, como o chão do quarto. É a hora da tua vitória, o regresso.

Fiz-te sinal que não, que aguardasses um pouco.


Um útero
Eu que não sou cega, vejo o estado primeiro das coisas e lhes adivinho o fim imaculado. Eu que não sou verde, amadureço os braços que me embalam, eu lhes mostro o sabor que o bolor dá. Eu que nunca serei muda, digo de tudo o amor que viver é.
Eu sonho a matéria dos espectros que viverão.
Eu que mulher sou.